A não linearidade da carreira e a importância de um bom Bat-cinto

Este texto é um resumo da aula ministrada para a turma de orientação de estágio do curso de Ciência da Computação da PUC-SP a convite do Prof. Ítalo Santiago. Nela falei um pouco sobre trajetória profissional e apresentei aos alunos uma outra visão sobre a não linearidade da carreira em tecnologia e da importância das diferentes habilidades que adquirimos em nossa jornada profissional.

Marvin Ferreira
8 min readOct 6, 2019

Há 10 anos atrás a minha jornada se iniciava, tive o privilégio de estudar na universidade que sempre quis e o mais importante, no curso que decididamente era o que havia escolhido para minha vida profissional “Ciência da Computação”.

Apesar de jovem e “inexperiente”, nessa época eu já possuía um conhecimento na área um pouco maior que de alguns dos meus colegas, já havia feito 2 técnicos e possuía certificações de mercado antes mesmo de entrar de fato nessa coisa de “computação”. Isso ocorreu principalmente pelo fato de eu ter tido a sorte de ter “me encontrado” (em algo que amo) em uma área específica do conhecimento, e não estou falando da profissão (pois existem inúmeros papéis dentro dessa carreira), estou falando de conhecimento, algo extremamente difícil de se fazer quando se é jovem, por diversos fatores, pressão familiar, condições financeiras, experiências prévias e etc.

Naquela época eu ouvi uma frase do referido Prof. Ítalo na primeira semana de aula “façam os próximos 4 anos valerem pelos próximos 40” e aquilo ficou cravado em minha mente, praticamente como um mantra, e ainda é o principal conselho que dou aos meus alunos. Seguindo tal conselho, e mesmo trabalhando desde o primeiro dia de aula, levei a dedicação acadêmica como coisa mais importante nos anos que se seguiram, algo que foi muito importante tanto academicamente, como profissionalmente falando (isso não é papo de professor).

Dado essa pequena introdução, agora começamos nossa discussão.

Por conta dessa dedicação e juntamente a imaturidade da idade, me era proporcionada uma visão ligeiramente limitada do mundo ao meu redor e de como as partes se encaixam no todo para que o mundo girasse.

Hoje, percebo que quando jovens achamos que temos todas as respostas, principalmente devido a velocidade que consumimos e aprendemos as coisas, absorvendo tudo ao nosso redor (ainda mais nos dias de hoje) a passos cada vez maiores. O problema maior de acreditarmos que temos todas as respostas, é que na verdade, mal compreendemos o que há por de trás das perguntas.

Admito, na época havia uma grande pedância de minha parte, pois dado os fatores acima citados, para mim tudo poderia ser resolvido com matemática e programação. Basicamente, a alta especialização acadêmica para um jovem como eu, naquela época causava uma certa cegueira, fazendo com que ignorasse todo o resto ao meu redor.

As únicas coisas que importavam eram, aprender a matemática cada vez mais difícil nas disciplinas que avançavam (principalmente se sair bem nelas, algo importante) e se tornar um programador cada vez mais “profissional”. Inúmeros livros, cursos, aulas e grupos de discussão para que no fim de tudo isso a resposta para tudo ao meu redor se tornar estritamente binária, ou há solução ou não há (pobre de mim), e tudo seria uma questão de ter os dados corretos, o modelo correto e a tecnologia correta para resolver determinado problema.

Essa “crença” de que a tecnologia (programação principalmente) resolveria todos os problemas, com o tempo foi perdendo um pouco da sua força. Nos primeiros anos após a graduação atuei estritamente como programador, codificando todos os dias sem parar (inclusive em finais de semana), pois aquilo era a minha “religião” e com aquilo eu faria do mundo “um lugar melhor”.

Conforme os anos foram se passando, e com isso o amadurecimento pessoal e profissional, vamos nos tornando seres humanos melhores (gosto de acreditar nisso).

Em meu mestrado tive a oportunidade de descobrir coisas além do meu pequeno mundo profissional e que puderam abrir meus olhos. Quando estudamos Engenharia de Sistemas e principalmente Sistemas Sociotécnicos aprendemos que quando há o fator humano em um sistema não é possível mais alcançarmos a sua linearidade e assim ele passa a ser um sistema complexo.

Nessa época eu já experimentava novos papéis, onde mesmo tendo como papel principal ser um “programador” eu me envolvia com outros papéis dentro dos projetos que participava e principalmente me preocupava com outras coisas dentro da empresa, como por exemplo “como os produtos são pensados e desenvolvidos”, ou, “como garantimos que estamos fazendo os desenvolvimentos corretos para alcançarmos os objetivos de nossos usuários e da empresa”.

E a partir daí novos horizontes começaram a se abrir, conforme o tempo passava, outras coisas me atraiam além da programação como processos de desenvolvimento de software, gestão e liderança de equipes, inovação, estratégias de negócios e até mesmo marketing (onde tive uma fase em que li diversos livros e artigos sobre o tema, principalmente os do Kotler que recomendo muito).

Tudo isso, na época, era um pouco confuso pois para “uma pessoa de exatas”, não precisávamos de tais ferramentas, tudo poderia ser resolvido em nosso mundinho cartesiano sem esses “papos de humanas”.

Conforme tinha a oportunidade de me envolver com outras áreas da empresa, projetos, discussões e etc, descobria que na verdade eu gostava muito do que as outras áreas faziam e já não via a tecnologia como único fator que “fazia as coisas andarem”.

Uma coisa devo admitir, conforme o tempo passava, era cada vez mais difícil desapegar do meu lado estritamente técnico (ainda é) e perceber que eu podia explorar aquelas outras áreas do conhecimento (e gostava muito), trazendo tanto impacto, profissionalmente falando, quanto eu achava que podia apenas sendo “programador”, ainda que boa parte do meu tempo fosse de fato o que eu fizesse profissionalmente falando.

Há alguns anos li um livro chamado “Digital Work in an Analog World”, um livro que apresenta estudos do campo da psicologia que foram aplicados a engenharia de software, leitura que recomendo muito e faz com que repensemos a forma como vemos a relação entre pessoas e papéis em nosso mundo da tecnologia.

Por exemplo, pessoas introspectivas e estritamente técnicas são muito importantes, são essas pessoas que provavelmente vão nos ajudar a resolver os maiores desafios técnicos quando aparecerem, porém, um time apenas de pessoas com este perfil pode não ser um time tão “perfeito assim”, questões de comportamento e trabalho em equipe podem influenciar diretamente na boa entrega de uma equipe deste tipo. Já um time com pessoas “médias”, tecnicamente falando, mas colaborativas, engajadas e que veem seu trabalho como parte de algo maior são equipes chamadas “dream team”, pois estes fazem de tudo ao seu alcance para enfrentar seus desafios, porém com um adendo, se reconhecem como equipe e contribuidores de algo maior (chamado de estratégia no mundo dos negócios), algo que de fato o fazem.

Segundo este livro, e estudos feitos, pessoas que produzem tecnologia “ideais” são pessoas que ainda que tenham alto nível técnico são capazes de contribuir e principalmente proporcionar um bom relacionamento em equipe.

Voltando ao assunto central deste texto, tudo isso me fez perceber que, na realidade o que possuímos é um grande “Bat-cinto”, ou caixa de ferramentas, que vamos adicionando itens ao longo do tempo e de nossa carreira.

Imagine a seguinte situação, Batman está correndo atrás de um bandido pela cidade de Gothan e de repente ele se vê na beira de um prédio em que não consegue saltar e em seu cinto possui apenas algumas Bat-granadas e Batarangs (bumerangue em formato de morcego). A partir daquele momento tudo está acabado, o bandido irá escapar, pois seus recursos são limitados em granadas e bumerangues. Agora, em uma situação em que seu cinto de utilidades também possui a sua Bat-corda a situação muda, ainda que ele não consiga saltar (de acordo com os quadrinhos), ele pode disparar sua corda e saltar para o prédio a sua frente, conseguindo capturar o bandido em sua perseguição.

Em nossa carreira pode chegar a hora em que nosso cinto de utilidades possuirá diversas ferramentas e isso nos faz poder contribuir com diferentes papéis.

É muito difícil, para nós como pessoas técnicas, nos pegarmos pensando “hoje eu mal escrevi uma linha de código, passei o dia com o time de produtos discutindo estratégia entre outras coisas” ou “passei o dia ajudando o time de SEO e de Marketing a resolver questões de tráfego e alocação de mídia em nossa plataforma”. Nesse momento, além das crises de carreira (risos), percebemos que nosso papel talvez tenha dado um passo adiante, não mais trazemos valor apenas fazendo aquilo que no passado acreditávamos que fosse nossa melhor (e talvez única) de trazer valor.

Nem lutadores de MMA praticam uma única arte marcial (o próprio nome já diz), agora, consegue imaginar quão útil é um carpinteiro que só sabe bater pregos?

Com o tempo e a tal da “senioridade” nossa carreira muda de rumo, papéis e responsabilidades. Podendo seguir para a “carreira em Y”, onde você pode decidir trilhar gestão ou ser um “especialista” (seja lá o que signifique isso).
Eu acredito que ainda haja um meio termo entre estas duas, pois o seu histórico profissional mais cedo ou mais tarde vai contribuir com os desafios do futuro, ou é só um argumento de uma pessoa, como eu, que não quer largar o osso assim tão facilmente (risos).

Buscar outras linhas de conhecimento é algo muito importante, intelectualmente e profissionalmente falando. Você pode acabar descobrindo novas paixões, filosofia, economia, marketing, desenho, música ou seja lá o que for. Cada uma essas “novas ferramentas” podem contribuir de alguma forma para o seu crescimento pessoal e profissional.

Atualmente (nos últimos 3 anos) meu interesse em economia tem crescido cada vez mais, especificamente falando sobre mercado financeiro, investimentos em ações, mercados globais, índices globais e política internacional (recomendo ouvirem o Podcast Xadrez Verbal).

Por exemplo, como é definido o preço de uma empresa na bolsa?
Talvez, quando jovem, para mim não era uma pergunta tão relevante, mas hoje é algo que a todo momento me pego pensando sobre diversas empresas. O preço de uma empresa, ou seu valuation, é uma análise técnica muito importante que possui inúmeras variáveis e nos faz entender porque uma empresa ou startup X, Y e Z é um “unicórnio”, ou pode ser e etc. Entender o valuation de uma empresa, nos faz compreender coisas como balanço financeiro, custo de produção, cadeia de valor, parceiros comerciais e uma infinidade de variáveis que no fim das contas ditam a forma como construímos produtos relevantes, desenhamos estratégias e fazemos com que nossas empresas vençam seus concorrentes.

Eu me considero ainda um programador, mas também sou Professor universitário, e meu papel atual é Líder Técnico (ou Tech Lead porque é chique), que é um papel mais técnico/estratégico que incluí atividades técnicas e de liderança, onde você pode ou não contribuir criando tecnologia, mas orientando, conectando times/pessoas/processos e fazendo a “casa andar”. Entender que esse papel atual faz muito sentido para o profissional que eu contruí ao longo dos anos não foi algo fácil, mas como um conselho que um amigo me disse e repasso aqui “abrace o processo”.

Você pode ser hoje um ótimo programador, ou ainda atuar na área de tecnologia e não gostar de programação (e está tudo bem), e com o tempo perceber que novos interesses o levarão a novos papeis ou até mesmo a uma nova carreira.

Tenho um colega que formou comigo, mas sempre atuou com RH e hoje tem sua própria empresa de recrutamento, muito bem sucedida diga-se de passagem, porém boa parte dos recrutamentos que são feitos são de altos cargos de tecnologia (CIO/CTO/Especialistas/Líderes em geral) e todas as habilidades que foram adquiridas durante sua formação de fato contribuem em sua atividade atual que somadas a outros conhecimentos adquiridos em sua carreira o tornaram um profissional ímpar.

Resumindo todo esse papo, nossa carreira não será algo linearmente desenhado, nossos conhecimentos, experiências, oportunidades (e vontades) nos levarão a diferentes atividades. Seja desenhando um sistema com uma arquitetura a prova de falhas com redundância de servidores e etc, a escrita de um plano de negócios ou proposta comercial de um novo produto que ainda será desenvolvido pela sua equipe.

Não tenha medo de experimentar, uma coisa que arrisco a dizer, não terminaremos nossas carreiras fazendo as mesmas coisas que as começamos,
portanto, abrace o seu processo.

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Marvin Ferreira

Engineering Manager at XP Inc. | Head of Technology | MBA Professor